sábado, 29 de março de 2014

BÍBLIA DO ROCK APRESENTA ÁLBUM DE ENTREVISTAS COM LENDAS VIVAS


ARTISTA CONVIDADO:

CARLO CASTOR DAUDT (MÚSICO DAS BANDAS URUBU-REI, CAMINHÃO HONESTO E DE FALLA).







Lenda viva do rock gaúcho, Castor Daudt, dispensa apresentações. Numa dessas conversas que tivemos ultimamente, fiquei com vontade de gerar uma nova polêmica neste tão decantado universo rock and roll em que vivemos. Decantado por causa da grande mídia que menospreza os novos talentos (genuínos) e fica dando força somente para o filhinho do patrocinador de programa de TV, que tem uma banda de garagem fabricada e necessita de jabá para decolar. Pois bem... Eis que, trocando ideias sobre música, como de costume, Castor começou a se desabafar comigo, reclamando do provincianismo do sul do país, especificamente Porto Alegre. Não é de hoje que os gaúchos adoram fazer auto-propaganda e super estimar demais sua cultura musical (e com toda razão, mas não muita, porque no resto deste imenso país rolam talentos que até Deus duvida). Não só Deus duvida, mas o Diabo também, e se ele é o Pai do Rock, na visão de Raul Seixas,  "ainda está faltando cultura para cuspir na estrutura". Tendo em vista isso, resolvemos armar essa entrevista para os reclamões de plantão se deliciarem e obviamente descerem o cassete na gente. Lógico que sabemos que isso sempre acontece porque ninguém gosta de fazer auto-crítica.  O Prêmio Arrogantes & Camaradas do Ano é um exemplo. Demorou para muito sulista entender, filtrar a proposta bem humorada do prêmio. O mesmo se refere a Castor, que mesmo sendo um dos mais respeitados músicos do país, a frente da banda DeFalla, ainda acaba ouvindo manifestações de preconceito que o incomodam quando visita a capital gaúcha. Aqui, nesta entrevista especial e inedita, ele não fala apenas da sua carreira musical, mas do seu passado pré-rock and roll e as dores de ter vivido numa metrópole deveras provinciana e que dava as costas para O NOVO. E foi esse obstáculo que a banda de De Falla enfrentou no começo, ainda mais que o vocalista Edu K. adorava desafiar as convenções trajando roupas femininas. A maioria do armário de sua mãe, segundo depoimentos seus na finada revista General. Sobrava também para o Castor, que se encarregava das argumentações e ideias que ficavam sempre subentendidas. Enfim...  
Com vocês, o confessionário de Castor Daudt, isto é, a entrevista de um gênio incompreendido. Boa leitura, galera!

                                                (Texto: Emerson Links).








CASTOR DAUDT - O PASSADO O CONDENA




1 - VOCÊ PENSOU ALGUM DIA SER INTRODUZIDO NUM GRUPO DE ROCK COMO O DEFALLA?

Acho que, bem no começo, eu pensava em fazer algo mais “hard-rock-tradicional, old-school”, mas por outro lado sempre gostei de misturas sonoras, de “fusion-samba-jazz-rock”, de “progressivo”, “funk”, “rap”, “punk” e estilos alternativos.

Então, agora pensando bem, acho que foi uma evolução natural, mais um caminho a percorrer, (com coração, claro!).

O DeFalla foi, e ainda é o veículo perfeito, na minha opinião, para se experimentar, ousar, quebrar paradigmas e chutar o pau da barraca do circo do rock brasileiro.

 2 - MAS O TEMA AQUI É A PRÉ-HISTÓRIA DO CASTOR, DOS TEMPOS EM QUE NÃO EXISTIA NEM PUNK E NEM WAVE, HAVIA APENAS HIPONGAS, ÓRFÃOS DE WOODSTOCK E DO ROCK DOS ANOS 1970. FALA UM POUCO DESSA FASE. 

Lá por 1976 eu me mudei, para o Bom Fim, ali  Av. Fernandes Vieira, esquina da Henrique Dias, pertinho do Zaffari, um pouco antes da sua inauguração.
O Bom Fim não era nada, nada acontecia por ali ainda...

Não existia nem o Bar Ocidente e a Sorveteria Alaska ficava muito distante, quase no Centro, e, ainda por cima, reunia somente os “desgarrados de Woodstock”, hippies universitários rebeldes que vendiam livrinhos de poesia pelas mesas.

A única coisa legal que tinha no Bom Fim, eram os CINE BALTIMORE e o CINE MINI-BALTIMORE (depois CINE BRISTOL), que juntava uma galera mais antenada por filmes, tanto “mainstream” como alternativos. Acredito que foi um fator chave para a formação da “aura” intelectual e artística do bairro.

E, na época, ou você era “poeta rebelde universitário”, “skatista”, “surfista” ou “roqueiro”.
E as gurias só queriam saber dos “surfistas”...

Ser “roqueiro” era muito “underground”, perigoso, mal-visto.
Nem preciso dizer o que escolhi ser, né? Ser “roqueiro” foi uma maneira de criar uma personalidade, de me destacar da galera “normal”, como todo guri de 15 anos precisa fazer.

A gente caminhava muito pela cidade, para assistir, por exemplo a um filme de rock (“The Song Remains The Same” do Led, “Woodstock” e etc), e ainda corria o risco de levar paulada da polícia e/ou gás, na fila da bilheteria por estar “causando tumulto”...juro.

3 - QUAL ERA SUA FILOSOFIA DE VIDA?

Vivia entre as filosofias de “hippie paz e amor” e “rebelde revoltado”.
A Ditadura Militar nos forçava à clandestinidade, a sermos “fora-da-lei”, pois era a única alternativa viável ao sistema opressor.

Eu estudava no Colégio de Aplicação, ali na UFRGS, e ainda guri, participava das manifestações e já levava gás lacrimogênio na cabeça, como “efeito colateral”...

Era a época do deslumbramento com as drogas, da maconha, dos cogumelos, dos comprimidos e bebidas roubados dos pais, de pegar as gurias, das “temíveis internações forçadas” de amigos viciados em clínicas, época dos cabelos compridíssimos, de longas caminhadas noturnas pela cidade e de muito rock progressivo.

4 - COMO ERA A CENA ANTES DO ROCK GAÚCHO DOS ANOS 1980 BROTAR? 

A grande banda de rock da época era o BIXO DA SEDA, seguido de perto pelas bandas: BYZARRO, BOBO DA CORTE, OS ALMÔNDEGAS (Pré-Kleiton & Kledir), CARLINHOS HARTLIEB, e outras mais iniciantes, como HÁLITO DE FUNCHO, HALAI HALAI, CAMINHÃO HONESTO, HOLANDÊS VOADOR e etc...

A gente ia assistir a um show do BIXO DA SEDA no Teatro Presidente, por exemplo, e logo depois ia assistir ao RICK WAKEMAN ou ao GENESIS no Gigantinho.
Era surreal.
Tudo parecia possível, e a gente sonhava em fazer uma banda e virar o YES da noite para o dia, ou pelo menos virar O TERÇO, RITA LEE & TUTTI-FRUTTI ou OS MUTANTES...

Eu entrei na música como baterista, substituindo o “Marcelo (TARANATIRIÇA) Truda”, que virou guitarrista, no CAMINHÃO HONESTO, banda gaúcha de “hard-rock” na linha de “STONES, DEEP PURPLE, LED”, e etc, mas com letras em português.

Isso foi por 1977, e, nunca vou me esquecer do dia em que uma guria bateu na minha porta, e, quando fui atender, ela disse que era a “Ananda Apple”, minha vizinha, e fã do CAMINHÃO HONESTO (e dos BEATLES), e queria tirar umas fotos nossas.
Foi um sinal que eu estava fazendo alguma coisa certa!

Ela e o “Carlos (Gordo) Miranda” foram comigo num dos primeiros shows do CAMINHÃO HONESTO no Colégio Rosário com o HOLANDÊS VOADOR, o Miranda cuspiu Ketchup na platéia no meio do nosso show e ficava atirando água gelada nas minhas costas, me perturbando enquanto eu tocava bateria...hahaha...típico “Miranda”!
Ele ainda não tinha formado o TARANATIRIÇA, mas já estava de olho vivo!

O CAMINHÃO HONESTO chegou a sair em fotos na ZH, na cobertura jornalística do FAC (Festival Anchietano da Canção), que acontecia pertinho da minha casa, ali na Av. Independencia, no Teatro Leopoldina, atual Teatro da OSPA.

Ganhamos “Melhor Interpretação” e a minha bateria “Pinguim” preta perolada, saiu com meu nome no bumbo na capa do 2º caderno!!
Foi algo bem marcante, como um prenúncio do que ainda viria pela frente!

Teve uma fase de bandas instrumentais, ótimas, diga-se de passagem, no final dos anos 70: RAIZ DE PEDRA, VÔO LIVRE, CHEIRO DE VIDA e TARANATIRIÇA (pré-Alemão Ronaldo).
Nesta fase instrumental do rock gaúcho eu toquei com meu grande amigo “Justino (GAROTOS DE RUA) Vasconcelos” na banda CHAMBORRAIA,  que só tinha 2 músicas cantadas, a maioria do repertório era instrumental, como de praxe...

Importante ressaltar que existia, na época, uma divisão bem marcante entre os “surfistas playboys” que eram os heróis nas praias gaúchas (Capão, Atlântida, Torres) e os “roqueiros malucos” que viviam no underground da cidade, no Bar João ou no recém-inaugurado Bar Ocidente (que no início era quase que exclusivamente GLS).

Gosto de pensar que eu, minha irmã, “Elenise Daudt”, (que era da turma dos “surfistas”), junto ao meu primo “skatista” “Renatão D’Oliveira”, colaboramos bastante para derrubar estas barreiras e integrar toda esta galera, então dividida, numa turma só.

Os surfistas começaram a freqüentar os bares do Bom Fim e os roqueiros, os da Av. 24 de outubro, começaram os shows de rock na Boate Crocodilus, na Danceteria 433 e etc...

Fui um dos primeiros a cruzar esta “barreira” de vertentes fazendo uma grande amizade com o então, campeão gaúcho de surf, “Geraldo (Bôto) Ritter”, que também tocava muito bem violão e gaita.
A gente se reunia nas tardes de verão em Atlântida (onde eu veraneava) e ficávamos tocando, conversando, e, aos poucos, a “turma do surf” foi integrando a “turma do rock”. Tocamos em luaus, festivais de surf, festas e etc...
As gurias começaram a olhar mais para nós...

O Geraldo até abriu um bar muito legal, o “Dose Dupla”, ali na Castro Alves, perto da minha rua, consolidando esta união de “facções”. Infelizmente morreu, ainda muito jovem, num acidente de carro, voltando de uma viagem de surf de uma praia de Santa Catarina.
Mas foi uma figura importante na formação e consolidação de um grande público misto, que viria a prestigiar a explosão do rock gaúcho nos anos 80 e 90.
Cheers, amigão!!


5 - VOCÊ PARTICIPOU DE UM DOCUMENTÁRIO SOBRE O BAIRRO BOM FIM, QUE É UM BAIRRO LENDÁRIO DA CAPITAL GAÚCHA. QUAIS FORAM SUAS IMPRESSÕES AO PARTICIPAR DESTE TRABALHO? COMO VOCÊ SE POSICIONA AO SABER QUE FOI O ÚNICO MÚSICO QUE REALMENTE "MOROU" NO BAIRRO BOM FIM?

Na verdade, não participei, nem fui convidado, ainda, a participar deste documentário!

Fui o único do DEFALLA que não foi entrevistado ainda, (e o único que realmente morou no Bom Fim, entre 1976 e 1987), justamente na época da formação e auge da cena.

Quero acreditar que tenha sido um desencontro normal de agendas da produção, acentuado pelo fato que moro atualmente em Maceió-AL, no Nordeste, (embora tenha passado bastante tempo em POA este ano).

Parece que vão usar a música “Não me Mande Flores”, que é de minha autoria, junto com o Flu Santos e a Luciene Adami (colaboração do Miranda).
Então, estarei no documentário de qualquer jeito...tudo certo!

Tenho muitas estórias sobre o começo e o auge do Bom Fim, eu era vizinho de janela do “Carlos Martau”, guitarrista fantástico do CHEIRO DE VIDA e ficávamos escutando músicas, um do outro pela janela; o “Moreirinha”. do SUSPIRAM BLUES, morou uns tempos do outro lado da rua...a gente se encontrava para fumar um baseado, subindo a Av. Fernandes Vieira, até a lancheria RIB’S, lá em cima na Av. 24 de Outubro, e aprontávamos todas pelo caminho.

A “Ananda Apple” era vizinha e a gente se cruzava direto também, e, eventualmente, muitos artistas e agitadores culturais vieram morar no Bom Fim.
Era a origem do novo centro cultural/boêmio de POA!

Meu apartamento na Av Fernandes Vieira era o “ponto de encontro” desta nova geração de roqueiros da cidade, eu tinha a minha bateria “Pinguim” montada no quartinho de empregada e as vezes ensaiávamos ali mesmo, e depois saíamos para ir ao cinema (Bristol), para a Lancheria Alaska, ou subir a lomba da Fernandes até a Av. Independência e, dali perambular até os bares da Av. 24 de Outubro e além...
...e ninguém tinha carro ainda...(isso pouco antes da abertura do Bar Ocidente e etc...)

A Polícia (!!) bateu um dia com uma intimação por “distúrbio e poluição sonora”, e tive de ir prestar depoimento, com meus pais, sobre a importância da música e da cultura na sociedade!
Pobres vizinhos...

Depois teve o auge do Bar Ocidente, o Bar Lola, o Scaler Voador, enfim, eu morava neste centro cultural e boêmio da cidade! E vivia intensamente tudo!

Na época eu saía de casa, a pé, ia no Cine Bristol ver um filme, depois no Bar João tomar uma cachaça e acabava no Bar Ocidente, dançava, daí voltava, com alguma garota, para casa. Isso tudo sem nem atravessar a rua!!
Se estivesse disposto a atravessar, poderia ir no Scaler Voador, Bar Lola e outros...

Só usava o carro em último caso, para ir a festas e/ou shows na Crocodilus, Danceteria 433 e afins...mas acabava fechando a noite no Bar Ocidente, e eventualmente a turma do surf, de lá, começou a me acompanhar de volta para o Bom Fim e começaram a curtir toda esta movimentação.

6 - O PÚBLICO DO RIO GRANDE DO SUL POSSUI UMA TERRÍVEL TRADIÇÃO DE MENOSPREZAR UM TALENTO EMERGENTE NO CAMPO DAS ARTES E DA CULTURA E SÓ PASSA A RESPEITAR O MESMO QUANDO ESTE FAZ SUCESSO NO EIXO RIO-SP. ESSE PROVINCIANISMO OCORRE DEVIDO A FALTA DE GRAVADORAS COM UMA FILOSOFIA DE PRIMEIRO MUNDO, E PELA FALTA, TAMBÉM, DE UMA CULTURA COSMOPOLITA. SERÁ QUE OS PRODUTORES E A OPINIÃO PÚBLICA GAÚCHA ADORAM UM PSICODRAMA COLETIVO OU ISSO É COISA DE SADISMO MULTIMÍDIA?   

Acredito que seja uma “colisão” do bairrismo com o provincianismo gaúcho:
por um lado achamos que o RS é perfeito, e que ser gaúcho é a coisa mais maravilhosa do mundo, e por outro lado valorizamos tudo o que vem do “eixo Rio-SP” e do exterior, USA ou EUROPA.

É um pensamento meio esquizofrênico que derrete o cérebro dos artistas gaúchos, pois amam o RS, mas tem que fazer sucesso fora, antes, para serem reconhecidos.
Por outro lado, existe um público gaúcho fiel que incentiva alguns artistas, é um padrão bem complexo, com muitas controvérsias.


7 - QUANDO VOCÊ AINDA NÃO ERA UM MÚSICO CONHECIDO SOFRIA NA PELE ALGUM TIPO DE PRECONCEITO OU RECEBIA UMA CRÍTICA DESTRUTIVA PELO FATO DE NÃO TER OPTADO INICIALMENTE POR UMA PROFISSÃO CONVENCIONAL? 

Sim, mas nunca me preocupei com isso.
Assim como a maioria dos meus amigos, tenho um QI bem elevado, uma boa inteligência emocional, e muita personalidade para fazer que bem entendo, sem nenhum tipo de preconceito ou amarras.

Sou formado em Publicidade & Propaganda pela PUCRS e ainda cursei 3 anos de Jornalismo na UFRGS, de lambuja.

Quando decidi ser músico, exclusivamente, foi uma decisão de coração, (eu até abandonei uma Pós-graduação em Marketing, bem no final, para me dedicar somente à música).


8 - MUITOS ARTISTAS TRAUMATIZADOS PELO PRECONCEITO TIVERAM QUE SUBIR PARA O EIXO RIO-SP. ENTÃO, IMAGINE ALGUÉM COMO VOCÊ QUE QUERIA TER UMA BANDA DE ROCK. QUAIS FORAM OS RECURSOS QUE VOCÊ USOU PARA SE SOBRESSAIR? POR QUE?

Tive a sorte de ter pais, amigos e amigas e namoradas fantásticos, músicos e não-músicos, que sempre me incentivaram na carreira musical, desde o início.
Consegui ir pulando de banda em banda até chegar no DEFALLA, sem muitos percalços.

Somente uma vez eu realmente cansei e pensei em desistir da música, foi lá por 1982!
Andava muito estressado e atarefado com as 2 faculdades, bandas, ensaios, festas, shows, drogas, namoradas...era muita coisa, e eu tinha só 21 anos...mal tinha tempo de dormir ou comer...

Vendi minha bateria e estava decidido a abandonar tudo!
Mas encontrei meu amigo “Carlos (Gordo) Miranda” na rua e ele me intimou a tocar na, ainda em formação, URUBU-REI, como baterista.
Ele me resgatou de volta para a música, conseguiu até uma bateria emprestada para eu tocar.

Esta dívida eu terei sempre, para com ele!

Aproveito para agradecer novamente àquele grande canalha, por aqui!!
E ainda, depois me deu a chance de “virar” guitarrista, quando a “Biba Meira” decidiu assumir as baquetas no URUBU-REI.

E no DeFalla sempre buscamos viajar bastante e fazer show em outros estados, coisa quer nem todos os grupos gaúchos da época gostavam de fazer. Não os julgo, pois estas viagens eram bem cansativas e muitas vezes tocávamos sem cachê algum, só por passagens, alimentação e estadia.


9 - CERTA VEZ, O CARLOS MIRANDA CONTOU EM ENTREVISTA DOCUMENTADA EM VT PARA O MEU FUTURO LONGA-METRAGEM "BÍBLIA DO ROCK" QUE O POVO GAÚCHO ERA TÃO CONSERVADOR QUE, ATÉ O INÍCIO DOS ANOS 1980, QUANDO ALGUÉM AVISTAVA UM JAPONÊS PASSANDO NA RUA LOGO IA TRATANDO O INDIVÍDUO COMO UM EXTRA-TERRESTRE: "Olha lá um japonês!!!". RO QUEIRO ERA VISTO COMO MALUCO DE INTERNAR EM MANICÔMIO. COMO ERA SOBREVIVER NESTES TEMPOS ONDE BANDAS DE ROCK FAZIAM O PAPEL DE "BANDIDO"?

Nos anos 70 era realmente complicado.
Muitos amigos e conhecidos meus foram internados em clínicas simplesmente por uso de maconha ou outra besteira qualquer, e por serem roqueiros cabeludos. Era foda.

Por sorte eu comecei cedo a fazer bandas de rock, aos 15 anos, daí eu levava tudo na brincadeira, sem maiores estresses. Era mais um “roqueiro cabeludo”...

Infelizmente este preconceito levou uma grande quantidade de excelentes músicos a desistirem da carreira musical. A maioria não conseguiu cruzar a barreira dos anos 70 para os 80.

Eu, o Marcelo Truda, o Flu e o Miranda, somos dos poucos que conseguiram virar a década de 70 para 80 fazendo música, tocando e tendo bandas, sempre insistindo.


10 - DENTRO DESTE CONTEXTO DE EXCLUSÃO COMO ERA VER UM CARA COMO O EDU K. MAQUIADO E USANDO ROUPAS FEMININAS E EM TAL SITUAÇÃO PASSEANDO TRANQUILAMENTE PELAS RUAS DE PORTO ALEGRE?

Achei bem engraçado quando vi o Edu K pela primeira vez.
Acho que foi num ensaio do URUBU-REI na casa do Miranda, na fase “PRINCE” dele e do “Xis”.
Depois ele descobriu meu endereço e começou a ir na minha casa pegar pedais e equipamentos emprestados, e  eventualmente ele virou parte da cena roqueira gaúcha, tocando com  “JÚLIO RENY E KM 0”  depois “FLUXO e, finalmente do “DEFALLA”.

Eu sempre o achei muito legal, engraçado e inteligente, e acabava tendo que defender ele de comentários preconceituosos e idiotas de algumas pessoas (que se diziam “descoladas”), na época. Muito preconceito e teimosia para um pessoal tão jovem...

Nos anos 80 e 90 ainda existia bastante preconceito da sociedade gaúcha e brasileira contra roqueiros, e imagine tocar no DeFalla, com o Edu K fazendo as maluquices dele, saindo por aí de vestido, saia ou maiô coloridos?
Éramos bem corajosos e escapamos muitas vezes de levar boas surras de Gangues e da Polícia, por pura sorte...

E não era somente no RS!
No Rio, SP, Paraná, SC, em todo lugar que íamos, as pessoas não entendiam nada!
Fomos cortados do Programa do Bolinha em SP, porque o Edu K estava com um maiô parecido com o das dançarinas! E tocamos um rock pesadão, bem diferentes do “normal” do programa.

São muitas estórias, e algumas delas estarão no documentário “ SOBRE AMANHÔ, da ZEPPELIN FILMES sobre o DEFALLA.


11 - O TERMO "SEXO, DROGAS E ROCK AND ROLL" AINDA SOBREVIVE OU É PURA HIPOCRISIA DOS PRODUTORES DE ROCK PARA VENDER BONÉS, CAMISETAS, ADESIVOS, CHAVEIROS, ETC?

Na época (anos 70, 80 e 90), levávamos a sério esta filosofia, mas hoje em dia nem saberia dizer...provavelmente deve ter virado mais um nicho de mercado, visando lucro.

12 - JÁ EXISTIU ALGUM TIPO DE MÚSICA QUE VOCÊ NUNCA TEVE CORAGEM DE FAZER?

Axé, Pagode, Sertanejo Universitário, estas vertentes genéricas modernas...

13 - COMO VOCÊ SE SENTIU AO SER EXCLUÍDO DE UM LIVRO QUE FOI NADA MAIS E NADA MENOS QUE UMA CÓPIA AÇUCARADA DE "MATE-ME POR FAVOR" NUMA VERSÃO ROCK GAÚCHO? VOCÊ ACHA QUE ESSES IMPOSTORES QUE FAZEM LIVROS APENAS TRANSCREVENDO ENTREVISTAS E QUE SEQUER DESENVOLVEM UM CONTEÚDO ANALÍTICO DEVIAM SER LINCHADOS EM PRAÇA PÚBLICA? 

Se é sobre o mesmo livro que estou pensando, eu realmente não entendi muito bem a estrutura da obra. Sou citado inúmeras vezes, estou em um monte de fotos de bandas gaúchas que fundei e/ou participei, mas nenhum dos autores se ocupou em me contatar, nem que fosse para confirmar algumas informações básicas...

(Tenho Fone Fixo, Celular, E-mail, Orkut, Facebook, Twitter e Whatsapp...sempre fui uma pessoa muito acessível, e atendo a todos, dentro do possível.)

Por isso estranhei, e, sinceramente, tem umas estórias bem “fantasiosas” sobre mim neste livro...

Mas não me importo com este tipo de coisa, senão os autores poderiam até enfrentar um processo jurídico bem interessante, porque uma vez contatei um deles e o sujeito foi extremamente grosseiro e arrogante comigo...não lembro quem foi, e nem quero lembrar...

Enfim, hoje em dia, já se tem uma perspectiva melhor destas coisas, as peças do jogo estão finalmente se ajeitando nos lugares certos, e, por mim, Let It Be...

14 - VOCÊ ACREDITA NO TÃO ACLAMADO "ROCK GAÚCHO"? ACHAS QUE ESSE TERMO É MAIS USADO PARA INFLAR EGOS SUPERESTIMANDO BANDAS QUE PROPRIAMENTE A DEFINIÇÃO DE UM GÊNERO?

Acho que o “rock gaúcho” tem muitas definições, filosóficas e mercadológicas, mas acredito que os roqueiros gaúchos sempre tiveram uma “arrogância sadia”, um “senso de superioridade”, que foi e ainda pode ser útil, contanto que seja regulado por um pouco de humildade, modéstia e realismo.

15 - VOCÊ TEVE OU TEM INIMIGOS?

Gosto de pensar que não.
Sempre tentei ser correto e justo nas minhas ações, dentro do possível.
Fui criado à moda antiga: peço licença, digo “obrigado”, ofereço assento nos transportes coletivos, não jogo lixo no chão, respeito os mais velhos, enfim, o básico, né?

Claro que, quando se é um jovem roqueiro, com apenas 20 anos, você pode pisar em alguns “calos” sem perceber, fazer besteiras, mas acredito que, hoje em dia tenho muitos amigos e amigas, e, quem ainda guarda algum rancor, por qualquer motivo, deve lembrar que tudo passa, que a roda gira, e não devemos nos prender a ressentimentos inúteis.

Hoje em dia, só quero ver o lado bom das coisas, nosso tempo é curto e não vou desperdiçar com inutilidades...

16 - EM SUA PRÉ-HISTÓRIA COMO VOCÊ IMAGINAVA QUE SERIA O ANO 2000?

Cara, era algo tão distante...
A gente lia “2001 Uma Odisséia No Espaço” e ficava imaginando mil coisas...
Incrível que, hoje em dia eu vejo algo feito em 2001 e penso...”que coisa velha!!”
Sempre imaginei uma conexão global, e felizmente temos a Internet hoje!

17 - VINDO DE UMA ÉPOCA ONDE NÃO EXISTIA INTERNET, CELULARES, NOTEBOOKS, ENERGÉTICOS, O QUE VOCÊ TERIA A DIZER A JUVENTUDE DE HOJE?

A Internet é uma ferramenta maravilhosa e as redes sociais também, mas não viva sua vida toda na frente de um monitor: saia, passeie, viaje, faça coisas concretas, faça amigos, inimigos, saia na chuva e se molhe, é a única maneira de se viver...e não precisa ficar postando tudo isso de 5 em 5 minutos, né?

18 - DEIXE AQUI O TIPO DE PERGUNTA QUE FARIA A SI MESMO - RELACIONADA AO TEMA DESTA ENTREVISTA "Castor Daudt - O Passado o Condena".         

Por que saiu do RS, abandonou a música e largou as drogas??

Abandonei a música por quase 10 anos, entre 1995 e 2005, vim morar no Nordeste, em Maceió-AL, casei, tenho uma filha e sou “Motion Designer” na TV Educativa-AL.
(Antes disso, já havia largado cigarro, drogas e bebidas em POA, lá por 1994.)

Muitas pessoas me perguntam por que eu fiz isso, e eu sinto muitas vezes que existe um “certo preconceito velado” por eu morar no Nordeste, ter “abandonado” o “maravilhoso RS” e ainda por cima ter deixado a carreira musical e as drogas.
Um “traidor”da trinca Sexo/Drogas e Rock??

Minha resposta é simples: fiz tudo com o coração!

Sempre tive problemas de saúde com o clima gaúcho, (sinusites, rinites e etc), e o clima nordestino é simplesmente perfeito para mim.

O abuso de drogas estava prejudicando minha inteligência, meu raciocínio e, até minha capacidade como compositor e músico, além disso, sempre tive curiosidade de trabalhar com Publicidade e Design para variar.

Acho instigante fazer coisas diferentes, ter opções, ser flexível, adaptável, ter a coragem de morar num lugar diferente, trabalhar em algo diferente, conhecer pessoas diferentes, mudar radicalmente, sempre que achar que é hora.

O “Miranda” é um bom exemplo disso também: saiu do RS para SP, mudou de músico para jornalista, e hoje em dia é jurado de um programa de calouros no SBT e produtor musical.
Isso é flexibilidade, adaptabilidade.
Coisa que a nossa geração sempre teve de sobra, ainda bem...

Juntando tudo isso, é fácil ver o “porque” desta minha mudança.

E talvez explique porque, às vezes, convenientemente, “esquecem” de mim em livros, entrevistas e documentários, afinal, eu posso ser facilmente, (e levianamente), classificado como um “traidor dos pampas”, um “renegado” da “filosofia : roqueiro gaúcho-drogado”.
Nada mais longe da realidade do que isso, e meus atos falam bem mais alto que quaisquer palavras.

E quem me conhece melhor sabe, e entende, o que fiz e porque fiz!

Sou gaúcho de coração, e sempre serei!
Um filho eterno do Bom Fim!!

Por isso aceitei voltar ao DEFALLA, desde Maio de 2011 e estamos desenvolvendo um trabalho relevante, mesmo à distancia.
Tem sido corrido, cansativo e difícil, mas por outro lado também tem sido excitante, engraçado e muito prazeroso.

Se eu não fosse flexível e adaptável o bastante, esta volta ao DEFALLA também não estaria sendo possível, pois eu poderia ficar confortavelmente, na minha comodidade, curtindo minha vida aqui em Maceió, sem maiores percalços a não ser os normais do dia-a-dia.

Mas o amor pela Música e pelo Rock ainda é maior do que tudo, e eu sempre farei o máximo possível para tocar, cantar, compor, gravar, viajar e fazer shows.

Para completar ainda tenho voltado bastante à minha querida terra natal (Porto Alegre) e adivinhem onde fico hospedado?

Obviamente, no BOM FIM, né?

Cheers!!



Castor, nos primórdios, bem acompanhado por Júlio Reny, Carlos Miranda, Biba Meira e Flu.













PARA SABER MAIS, OUÇA CASTOR DAUDT NOS SEGUINTES VIDEOS DAS BANDAS QUE PARTICIPOU:




































3 comentários:

  1. Ainda assim, com regime militar e tudo, teve toda a condição possível para se tornar a fera do rock e fazer história em Porto Alegre. E hoje, cadê a galera para ir além disto? De que serve democracia se não se usa ela para evoluir em algo? O pessoal está acomodado demais, até na cultura. Olha ai um exemplo de que basta querer para se fazer! Parabéns amigo Emerson Links pela entrevista e parabéns Castor Daudt pela história, pois escolher ser roqueiro quando isto não dava mulherada é para quem confia muito no seu taco, a ponto de ir no caminho do que se acredita e não no que é moda!

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  2. Agradeço suas gentis e sutis palavras, Antônio. Acredito que o Castor também logo tomará conhecimento deste seu bem-vindo depoimento. Um Abraço!

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  3. Perfeito, Antonio Vigne! A nossa geração lutou por cada milímetro conquistado. Nada foi de graça, nem fácil...e até hoje lutamos contra este sistema falido e injusto, este governo inepto, corrupto e ladrão. Mas seguimos sempre em frente, e fazendo música e barulho, dentro do possível! ABS!!! Cheers!!!!

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